"Anônimos falares
Seis minutos! Exatos 360 segundos. Perturbadora meia dúzia de minutos. Relativamente atrasado, caso o encontro às 20h15 não se tornasse um passeio soturno individual. Só. 20h21 e é a moça da recepção, o sorriso da moça da meia-entrada, o motivo da leveza em minha melancolia: entre cinco cigarros e 600ml de Brahma, consumidos em cerca de 30 minutos, e muitos tremores nas mãos, tempo suficiente para descer cerca de metade de uma esquina e retornar ao galpão da companhia teatral Odeon. Eu, 13 pessoas (que se multiplicariam em cerca de 60) e ela, o cabelo curto e cheio dela, o nariz exótico dela, o vestido "tomara que caia" talvez rosa dela, a pele queimada combinando com o traje dela, o olhar reluzente dela, o sorriso largo dela, o meu sorriso em retribuição ao dela. De coadjuvante a protagonista em minha percepção da peça Fala comigo como a chuva, da Companhia Teatro Adulto (adaptação do romance Talk to me like the rain and let me listen, de Tennessee Williams).
Na mini-meia-arena, três fileiras centrais, cheias. Nas laterais, uma de fronte a outra, por volta de seis sujeitos numa e noutra duas mulheres, eu e, na bancada abaixo, a moça. Ao som de trilha francesa, dramática, o frisson provocado pela beleza obscura de Samira Ávila, intérprete - branca, magra, esguia, de seios quase medianos, olhar fundo, nariz afilado e longo, compridos cabelos negros, lisos e com franja – de Poliana, Brisa, Luíza ou qualquer que seja a personificação do desespero feminino. Garrafas acumuladas ao pé do televisor, ao lado de duas camas vazias, num quarto gélido. Noites em claro, entre garrafadas de água, imersa num tédio tamanho. Esse, impossível de ser quebrado, nem mesmo pelas simulações de luta marcial (chutes, socos e histéricos gritos, que não despertaram o mesmo efeito que a gargalhada unívoca e natural da recepcionista) do homem de trinta e poucos anos, bêbado, que acabara de chegar declamando sua madrugada na orgia. Ele, o desespero existencial masculino. A dureza de mais um dia por vir. A luz, chapada, arrombando a retina, em mais uma assustadora manhã que raia para o casal, que há muito já é dois. Sós.
É sobre o drama existencial humano que versa Fala comigo. Sobre o sofrimento que, embora tamanho, é sempre submisso à escolha individual (mesmo quando não vemos saídas ainda podemos escolher o suicídio, diria Peter Berger). É sobre aquela chuva fina que, no movimento dos corpos, em dia frio e cinza, só serve ao cortante incômodo. É sobre o amor bruto, cachorro. É sobre forma e conteúdo, significado e significante, tatuagem, literatura, Gustav Klimt. É sobre gente, demasiado humano, que ainda sim pode e acha plausível dizer sim a um pedido amistoso de dança com o inimigo em meio à guerra declarada. É sobre gente com brio, que sabe dizer não e que vê na fuga a chance humana de uma nova vida – mesmo que uma na qual o anseio maior seja o envelhecimento sem perceber-se, sem espelho, sem o conteste do outro, sem a linguagem do tempo.Não conhecia, absolutamente, nada da franco-sensualidade musical de Yann Tiersen, Carla Bruni, Mireille Mathieu ou Claude Dubois. Pouco conhecia da crueza do poeta estadunidense Walt Whitman ou da melancolia de Tennessee Williams. Eu não conhecia os riscos, a subjetividade, a geometria, o cumprimento de Klimt, muito menos sua extensão reproduzida fragmentadamente no tecido do braço esquerdo de Ávila. Tampouco a leveza da minha recepcionista-protagonista (idade, crenças, preferências, sonhos, nada, nem mesmo função e nome, ausentes na ficha técnica da dramaturgia). Mas foi seu olhar, tal qual a fuga daquela louca, agora Caroline Turner, para um local ermo e à vomitar em literatos mortos, o estanque daquilo que em mim, também, tudo destrói: o tempo. "De outro anônimo, obrigado, anônima. Deu-me força para, como tantas Polianas, Brisas e Luízas, recomeçar, do zero", era o que eu pensava, enquanto, na porta do galpão, observando a saída de felizes casais, projetava uma nova caminhada, de quinze minutos, mais cinco cigarros, pr'um novo bar. " Nilmar Barcelos!
Um comentário:
Obrigado a vocês =)
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