Eu também escrevi sobre a peça...Sobre o processo. Tá aí, gente. Coração abertinho estatelado na mesa de cirurgia. Ha! Vai ser publicado!
Todo ator tem um caderno
Notas de um processo de criação
Um caderno ou um pedaço de papel que seja. Um lugar seguro onde as coisas pareçam ficar mais organizadas. Algo que resuma o que é possível ser dito do momento de criação. O caderninho acompanha a gente. E ele vai tomando corpo, ficando estufado de pedaços da coisa que está sendo construída no processo. Pensamentos, textos e frases. Muitas frases e palavras extremamente grifadas e intensas, esboços e desenhos tímidos ou elaborados, colagens, rasuras. Sim, muitas letras e idéias cortadas. Páginas saltadas em branco também. Páginas excessivamente carregadas.
Cinco meses de criação no espetáculo Fala Comigo como a Chuva deram mais que um caderninho e montes de notas. Hoje, seguindo as páginas depois da obra teatral já pronta, revisito o processo registrado, desde o primeiro dia de chuva. Seguem fragmentos retirados do diário de bordo deste processo de criação:
“Fala comigo como a chuva.
É bom pensar na língua da chuva pra começar. Voz de chuva, fala de chuva.
Ensaiamos num dia de chuva. O primeiro encontro foi em chuva. Na hora pensei nisso, que as palavras tinham que cair de algum jeito que, ao tocar (o solo, o corpo, o parapeito da janela ou a vidraça) mudassem alguma coisa: o cheiro, a textura, o ritmo, as cores das coisas. “ Terça-feira, 15 de janeiro de 2008.
§
“Um exercício: olhar o que uma chuva causa. A chuva de Tennessee Willians, no texto, não é tempestade, não faz alvoroço. É chuva companheira de tarde na janela. Chuva que começa com restinho de sol e continua no cinza até fazer noite.
Dá coragem porque provoca movimento. E essa mulher, personagem sem nome, que começa a fazer o movimento de algo que começa a cair e que segue sem cessar. Nada pode ter muito peso, por mais que o pareça.” Sem data.
§
“Uma imagem:
ROUPAS NO VARAL EM DIA DE CHUVA (tenho certeza que algum poeta já falou disso).
Displicência, descuidado. Acho que a Mulher é essa roupa.
Antes de se prender ao texto dramático é necessário criar o universo do personagem. Abandono. Horas sentada numa cadeira, secando.
Quieta, pequena, muda, seca e dura como um pano de chão endurecido pelo sol. LONGOS CABELOS. Sim, é necessário. Não só para a estréia, mas para os ensaios. É necessário.” Quarta-feira, 06 de fevereiro de 2008.
§
“Li que uma moça autista criou uma “máquina do abraço”. Um lugar rodeado de almofadas onde ela pudesse se posicionar no meio para se sentir abraçada. Sem ter contato com o outro. Mas se sentindo RECONFORTADA. Não consigo parar de pensar nisso. Hoje busquei o alheamento da Mulher, o abandono do corpo, um estado de absurdo.
Para o corpo, posso buscar algumas características que anotei deste livro sobre autismo:
· Riso inapropriado
· Pouco ou nenhum contato visual
· Perceptível hiperatividade ou extrema inatividade
· Acessos de raiva
· Age como se fosse surdo (será?experimentar)
· Dificuldade em iniciar ou manter uma conversa.” Quinta-feira,13 de março de 2008.
§
“Quando ela ri, dói nela.”Sem data.
§
“Texto da Mulher, esse meu personagem sem nome, de Tennessee Willians:
“-eu lerei grandes livros e os diários de escritores já mortos. Eu vou me sentir mais próxima deles do que das pessoas que eu conheci antes de ter me retirado do mundo. Essa minha amizade com os poetas mortos vai ser doce e refrescante porque eu não terei que tocá-los e nem responder às suas perguntas.” (WILLIANS, 1953).
Escritores já mortos. Me lembro do filme “A sociedade dos poetas mortos” e de Walt Whitman: “Oh Captain, My Captain!” (WHITMAN, 2006).
E tem Fernando Pessoa. Reler: O livro do Desassossego.” Terça-feira, 22 de abril DE 2008.
§
“A arte de perder não é nenhum mistério
Exato momento de perder-se.Desconstruir. Ai, eu que sou tão apegada a uma revista velha que fosse!
A GENTE SÓ ESTRANHA O QUE RECONHECE.Bom.” Sexta-feira, 02 de maio.
§
“Do ensaio de hoje, um amigo daqueles com muito respaldo de fala, viu em cena um "catálogo de neuroses". Sim, estão todas ali naquele espaço-lugar onde os dois estão. Até que ponto uma relação pode deformar (e agitar) a alma? Cada um tem seu exemplo, às vezes - muitas vezes - na primeira pessoa. Essa mulher fala coisas pra dizer outras coisas ainda. Pensamos nisso. O que se insiste tanto em não dizer?
"Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo o interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? assim fiquei eu..., em que pese a dura comparação. Para me adaptar (sic) ao que era inadaptável (sic), para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus aguilhões - cortei em mim a força que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. "(LISPECTOR, 2002).Sábado, 10 de maio de 2008.
§
Ao reler esses fragmentos, lembro-me do percurso, da viagem. E é com carinho e cuidado que coleciono os registros de todos os trabalhos nos quais estive envolvida. Sim, todo ator guarda seu diário de bordo, que aponta o processo de criação particular a cada obra. Nossas viagens são também descobertas e desbravamento de um lugar ainda desconhecido, com uma rotina intensa e curiosa em busca do novo. Assim como uma viagem a uma cidade, estado ou país cada processo guarda memórias que ficam impregnadas à vivência, que modifica o sujeito ao final do percurso. O período de criação de uma obra - desse lugar que ainda não existe - guarda cheiros específicos e músicas próprias. O diário registra as descobertas: novos autores e livros, filmes, sonhos, novas pessoas, experiências sensíveis e sensoriais particulares. Ao final, o percurso sempre confere mudanças e estabelece novas referências.
Em teatro o “cartão postal” do lugar para onde viajamos só fica pronto ao final e é a própria obra, a ser vista pelas pessoas em um espetáculo. No caso da minha última “viagem”, as palavras escritas um dia antes da estréia, já apontava esse novo lugar:
“Sonia Lins, sobre a arte:
"A generosidade. Haverá arte sem ela? Quando a arte que morava em você é expulsa como um vômito que nada pode segurar, você se reparte e se oferece aos pedaços sem querer saber se o que faz ou o que mostra é bom ou mau - é você e nada mais - não há troco a ser conferido."(LINS, 2003).Eu também estou por aqui, sem conferir nenhum troco. “Fala comigo” é um dos raros momentos na vida de um artista onde pouco importa tudo o mais, a não ser a obra. O fazer. O querer simplesmente fazer porque se precisa fazer. Não há troco a conferir. Simplesmente é. Desculpem-nos, mas nada foi calculado. Não temos estratégia. Estamos, essencialmente, pairando em um lugar que criamos, que amamos, que não é melhor nem pior que o do meu vizinho do bairro. Um lugar vivo, generoso e imponderável!”Quinta-feira, dia 29 de maio de 2008.
*O espetáculo Fala comigo como a chuva, com os atores Luiz Arthur e Samira Ávila sob direção de Cynthia paulino, estreou em Belo Horizonte no dia 30 de maio de 2008.
Samira Ávila é atriz, professora de teatro e mestranda em Letras na UFMG.
Referências Bibliográficas:
LINS, Sonia. O livro das sabedorias, Rio de Janeiro, 2003.
LISPECTOR, Clarice. Correspondências - Clarice Lispector (organizado por Teresa de Monteiro), Rio de Janeiro, Rocco, 2002. Baseado em cartas pessoais trocadas com Lucio Cardoso e sua irmã Tania.
WILLIAMS, Tennessee. 27 Wagons Full of Cotton and Other One Act Plays, trad. de Maria do Carmo de Ávila. New Directions, NY (revised), 1953.
WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. Tradução e posfácio Rodrigo Garcia
Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2006.
sábado, 31 de janeiro de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário