quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A TUA PELE DESCALÇA

Veio uma onda . A varrer o meu sono .
Caminhava nele como caminho na areia .
Nada me une ou divide. Nada me retém.
Sentas-te onde me sento no teu colo
e peço sempre a mesma história . A tua voz
cria as memórias que hei-de ter . Por agora
caminho ao longo das gaivotas e grito como elas
quando a maré baixa . Às vezes apoio-me num rochedo
para dizer “casa” e logo desmorono. Sigo descalça
como tu para dizer “seguimos”. Mas são apenas sons
sob o sol de maio. Murmúrios do que não serei.
Sempre tive problemas com o verbo ser. Faço
e desfaço as malas, entro e saio das gavetas.
Pausa na camisa que vestiste da última vez.
Uma vontade de a amarrotar, desapertar os botões
e sentir lá dentro a tua pele cá fora.
Tudo isto é tão verdade como podem ser os botões
de uma camisa escrita. Confesso que não pensei na cor,
ou se era às riscas. Agora acho que podia ser a de quadrados.
Em qualquer delas a tua pele entra na minha.
Rosa Alice Branco

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

CULTURA
Conexão Curitiba
Miguel Anunciação CRÍTICO/ESPETÁCULOS
http://www.hojeemdia.com.br/

Graças, principalmente, à qualidade e à diversidade da realização dos grupos, o teatro feito em Minas despertou estupendo interesse de público e crítica nas últimas edições do Festival de Curitiba. Quem nunca esteve lá não pode imaginar o quanto. Infelizmente, a edição deste ano reserva menos espaço à nossa criação: apenas um espetáculo produzido aqui integra a Mostra Contemporânea da 17ª edição do mais divulgado festival de artes cênicas do país, que este ano acontece na capital do Paraná entre 17 e 29 de março. Apenas “Histórias de Chocar”, a adaptação de Adélia Nicolete para a novela/diário “Ensaios de Amor”, no qual o filósofo franco-suíço Alain de Botton descreve a relação vivida no palco pelos atores Paulo Azevedo e Rita Clemente.
Mineiro também, destaque da programação da Mostra de 2008 com “Salmo 91”, Rodolfo Vaz retorna este ano a Curitiba com “Por um Fio”, adaptação de 11 histórias do título homônimo do doutor e escritor Drauzio Varella. O texto aborda o quanto as pessoas tomadas pela iminência de morte transformam radicalmente a maneira de se comportar. Premiado com o Shell/SP pela memorável interpretação do travesti Veronique e o ator (afastado) do grupo Galpão, Rodolfo contracena com Regina Braga na montagem dirigida por Moacir Chaves.
Radicada em São Paulo há alguns anos, Yara de Novaes dirige “A Mulher que Ri”, um texto de Paulo Santoro, talento ligado ao CPT de Antunes Filho. Com cenografia e figurinos de outro mineiro, André Cortez, e um elenco formado por Eloisa Elena, Fernando Alves Pinto e Plínio Soares, o enredo da peça descreve como um homem recorda os bons momentos vividos em família, quando ainda era jovem. Também instalado em SP, só que há mais tempo ainda, Gabriel Villela dirige sua versão de “Calígula”, dramaturgia de Albert Camus.
“Congresso Internacional do Medo”, do grupo Espanca!, e um ensaio aberto do novo espetáculo do Galpão também foram cogitados. A saída da Petrobras do rol de patrocinadores teria justificado o corte. Além dos quatro convidados, mais 21 espetáculos integram a Mostra Contemporânea deste ano, cinco deles são estreias.
Após alguns anos priorizando a criação em grupo - e só o valor desta escolha já desautorizaria a insinuação que o festival viria perdendo importância -, a programação reserva espaços para os elencos e para algumas celebridades. Marília Gabriela e Bibi Ferreira, por exemplo. Marília leva “Aquela Mulher”, o monólogo escrito pelo escritor angolano José Eduardo Agualusa; e Bibi leva “Às Favas com os Escrúpulos”,comédia extremamente mal falada pela crítica.“É um espetáculo que foge realmente ao padrão da programação, mas resolvemos escalá-lo como homenagem a Bibi, a única diva do teatro nacional que ainda não havia participado do festival”, afirma Leandro Knopfholz, coordenador do evento, que escala bem comentadas montagens de grupos e criadores estabelecidos principalmente no eixo Rio/São Paulo. Representam a cena carioca a Cia dos Atores (RJ), que desloca a Curitiba quatro exemplares da suas “Autopeças”, cenas escritas, dirigidas e/ou interpretadas por seus atores; a Cia Armazém (RJ) vai exibir a elogiadíssima “Inveja dos Anjos”; e a Cia Os Dezequilibrados apresenta “Memória Afetiva de um Amor Esquecido”; e Inez Vianna defende “A Mulher que Escreveu a Bíblia”.
De SP, destaque absoluto para “Rainhas”, direção de Cibele Forjaz para o clássico de “Mary Stuart”. Com Izabel Teixeira e Georgette Fadel, foi eleito pela Folha de SP como o melhor programa teatral da temporada paulistana em 2008, junto com “Aqueles Dois”, da Cia Luna Lunera.
Raramente escalados pelos grandes festivais, três montagens nordestinas aguçam atenções. Duas são do Bagaceira, de Fortaleza (“Tá Namorando, Tá Namorando” e “Lesados”), grupo com pesquisa de linguagem, realmente; e “Muito Barulho por Quase Nada”, que Eduardo Moreira, do grupo Galpão, dirigiu há muitos anos para o grupo Clowns de Shakespeare, de Natal (RN). Do exterior, oferta escassa em Curitiba, vem a chilena “Sin Sangre”, cena que mescla teatro e cinema.
No que tange ao teatro,o festival beira os limites da saturação: este ano escala 65 espaços teatrais (dos oito novos, o Positivo oferece 2,2 mil poltronas) e mais de 300 espetáculos. Só no Fringe são 290 montagens, escolhidas entre 498 inscrições. São números recordes: Curitiba nunca registrou demandas tão expressivas na mostra paralela. Algumas seguirão de Minas. Pegam a estrada “Fala Comigo Como a Chuva”, “A Morte de DJ em Paris” (solo de Luiz Arthur), “O Lustre” e “Dois de Novembro”, os dois últimos em cartaz na Campanha .Sem ter como crescer mais, o festival investiria “verticalmente”: a programação desta ano escala humoristas (o Risorama completa sete edições), números circenses (o 2º Mish Mash) e os primeiros Gastronomix (encontros gourmets) e PUC Idéias (para debates) e shows de Trio Mocotó e Farora Carioca. “Nossa intenção é tornar Curitiba uma festa”, diz Leandro.
Perceba como no “www.festivaldecuritiba.com.br”.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Algum lugar improvável

Kurt Halsey Frederiksen

Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora.

Para que o protejam, para que sintam falta.

Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços,

sem deixar endereço.

Um dia mandará um cartão-postal de algum lugar improvável.

Bali, Madagascar, Sumatra.

Escreverá: penso em você.

Deve ser bonito, mesmo melancólico,

alguém que se foi pensar em você num lugar improvável como esse.

Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo.

Parado atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos começa a passar.

Caio Fernando Abreu


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

“No momento em que definitivamente nos compromissamos,
a providência divina também se põe em movimento.
Todos os tipos de coisas ocorrem para nos ajudar,
o que em outras circunstâncias nunca ocorreria.
Todo um fluir de acontecimentos surge a nosso favor.
Como resultado da decisão, vêm todas as formas imprevistas de coincidências,
encontros e ajuda material,
que nenhum homem jamais poderia ter sonhado encontrar em seu caminho.
Qualquer coisa que você possa fazer ou sonhar pode começar.
A coragem contém, em si mesma, o poder, o gênio e a magia”
Goethe.
http://www.festivaldecuritiba.com.br/servlet/IndexProgramacaoController?state=3&alvo=mostra2009&codTipoEvento=1009

FRINGE
http://www.festivaldecuritiba.com.br/servlet/IndexProgramacaoController?state=3&alvo=fringe&codTipoEvento=1010

A Morte de DJ em Paris
A Morte de DJ em Paris mostra um retrato poético de um Brasil que viveu censuras e punições na época da ditadura militar. Foi o grande vencedor do Concurso de Contos do Paraná, em 1971, do Jabuti, em 1975, e integra a antologia Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Esta adaptação para os palcos venceu seis prêmios nacionais, inclusive de melhor espetáculo e de melhor intérprete.
http://www.festivaldecuritiba.com.br/servlet/DetalhesEventoController?state=1&codEvento=1027

Fala Comigo Como a Chuva
Fala Comigo Como a Chuva é uma pequena jóia do dramaturgo americano Tennessee Williams. Um homem e uma mulher falam com desilusão de sua existência, da solidão em que estão mergulhados e da incapacidade de mudar suas vidas. O público - bem próximo aos atores - acompanha um dia na vida desse casal sem nome, dentro de um quarto apertado, no qual sonho e realidade pontuam falas, silêncios e desejos. http://www.festivaldecuritiba.com.br/servlet/DetalhesEventoController?state=1&codEvento=1131

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009


“Tudo está claro no que se refere ao pão, e no que se refere à paz também. Mas a questão cardinal sobre a primavera deve, a qualquer preço, ser resolvida."

Maiakóvski
http://www.festivaldecuritiba.com.br/imagens/Informativo_Festival_de_Curitiba_2009_site.pdf

18 a 29 março 2009 FRINGE
Espaço aberto para a diversidade, o Fringe forma um grande e rico panorama
do teatro produzido no Brasil. Com o caráter de mostra aberta, sem
curadoria ou limitações, reflete toda a riqueza e variedade das artes cênicas
contemporâneas. Trata-se de uma chance única para conhecer o trabalho
de atores e diretores, que aproveitam a oportunidade para serem revelados
ao Brasil. Criado na sétima edição do Festival de Curitiba, em 1998, o Fringe
foi inspirado no modelo do Festival Internacional de Edimburgo, Escócia.
Por aqui também virou um sucesso. Este ano conta com 290 espetáculos
de todo o país, além de participantes da América Latina e até África. Se
originalmente o termo “Fringe” significa “franja” ou “margem”, traduzido
do inglês, no Festival de Curitiba é sinônimo de um capítulo importante e
ligado à essência deste evento cultural sempre efervescente.


A Morte de DJ em Paris
Monólogo Teatro Cleon Jacques
Dias 22 às 17h30, 23 às 18h, 24 às 16h
Ingressos: R$ 20 e R$ 10
A Morte de DJ em Paris mostra um retrato poético de
um Brasil que viveu censuras e punições na época da
ditadura militar. Foi o grande vencedor do Concurso
de Contos do Paraná, em 1971, do Jabuti, em 1975, e
integra a antologia Os Cem Melhores Contos Brasileiros
do Século. Esta adaptação para os palcos venceu seis
prêmios nacionais, inclusive de melhor espetáculo e de
melhor intérprete.
Companhia Teatro Adulto Com Luiz Arthur Duração: 50’


Fala Comigo Como a Chuva
Drama Belo Horizonte/MG Teatro Cleon Jacques
Dias 22 às 21h30, 23 às 12h, 24 às 13h
Ingressos: R$ 20 e R$ 10
Fala Comigo Como a Chuva é uma pequena jóia do
dramaturgo americano Tennessee Williams. Um homem
e uma mulher falam com desilusão de sua existência,
da solidão em que estão mergulhados e da incapacidade
de mudar suas vidas. O público - bem próximo aos
atores - acompanha um dia na vida desse casal sem
nome, dentro de um quarto apertado, no qual sonho e
realidade pontuam falas, silêncios e desejos.
Companhia Teatro Adulto Com Luiz Arthur e Samira Ávila Duração: 57’

domingo, 15 de fevereiro de 2009

"...sabe que o meu gostar por você chegou a ser amor pois se eu me comovia vendo você pois se eu acordava no meio da noite só pra ver você dormindo meu Deus como você me doía de vez em quando eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praça então os meus braços não vão ser suficientes pra abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você sem dizer nada só olhando e pensando meu Deus como você me dói de vez em quando"
Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

Paula Rego

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos

e não ver vista que não sejam as janelas ao redor.

E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas,

logo se acostuma a acender mais cedo a luz.

E, à medida que se acostuma, se esquece do sol, se esquece do ar,

esquece da amplidão (...)

Marina Colassanti

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009


essa a vida que eu quero,
querida
encostar na minha
a tua ferida
Paulo Leminski

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

The fury of sunsets

Algo
frio está no ar,
uma aura de gelo
e fleuma.
Todo o dia construí
uma vida e agora
o sol afunda-se para
se desfazer.
O horizonte sangra
e chupa seu polegar.
O pequeno polegar vermelho
desaparece de vista.
E admiro-me
com minha própria vida,
este sonho que vivo.
Eu podia comer o céu
como uma maçã
mas prefiro
perguntar à primeira estrela:
Por que estou aqui?
Por que vivo nesta casa?
Quem é o responsável?
Hein?

Anne Sexton Tradução Priscila Manhães

sábado, 7 de fevereiro de 2009


(...)

Vê só:

Eu não te olho com o teu olho que sabe

que quase tudo em ti é transitório.

Meu olho-liquidez

descobre uma tarde esvaída,

tarde-madrugada

Tempo alongado onde te fizeste em viuvez.

Não perdeste a mulher ou o homem que amavas.

Amamos tanto

E a perda é cotidiana e infinita.

(Ária amaríssima de um instante/Hilda Hilst)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Viva Viva Viva! Viva a sua vida, viva o amor , viva a família e viva os amigos!

Celebrar

Festejar

Comemorar

Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira.
Goethe

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Luiz Arthur, o 'nosso' Toso quarentão: parabéns pra você, nessa data querida...


When no-one else can understand me
Quando ninguém mais puder me compreender
When everything I do is wrong
Quando tudo que eu faço estiver errado
You give me hope and consolation
Você me dá a esperança e consolo
You give me strength to carry on
Você me dá força para continuar
you're always there to lend a hand
E você sempre lá para me dar uma mão
In everything I do
em tudo que eu faça
That's the wonder The wonder of you
Isso é maravilhoso, você é maravilhosa
And when you smile the world is brigther
E quando você sorri o mundo fica mais brilhante
You touch my hand and I'm a king
Você toca minha mão e eu sou um rei
Your love for me is worth a fortune
Seu beijo pra mim vale uma fortuna
You love for me is everything
Seu amor para mim é tudo
I'II guess I'II never know the reason why
Eu acho que nunca saberei a razão
You love me as you do
por que você me ama desse jeito
That's the wonder The wonder of you
Isso é maravilhoso, você é maravilhosa
(Baker Knight " The wonder of you"/ Elvis Presley)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009






No entanto hei-de falar-vos delas um dia, se me lembrar, se puder, das minhas estranhas dores, em pormenor, distinguindo entre os diferentes géneros, para maior clareza, as do entendimento, as do coração ou afetivas, as da alma (mais bonitas não há) e finalmente as do corpo propriamente dito, primeiro as internas ou latentes, depois as da superfície, começando pelo cabelo e couro cabeludo e descendo metodicamente, sem pressas, até aos adorados pés, lugar dos calos, cãibras, frieiras, joanetes, unhas encravadas, pústulas, gangrena, pé boto, pé de pato, pé-de-galo, pé-de-cabra, pé chato, pé de atleta e outras bizarrias. E, aos que tiverem a gentileza de me ouvir, falarei também, na mesma ocasião, de acordo com um sistema inventado já não me lembro por quem, daqueles instantes em que, sem se estar drogado, nem bêbado, nem em êxtase, não se sente nada.
Samuel Beckett

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A primeira neve

Kelly Vivanco

Desse lado da avenida bate o sol

Passam automóveis, cores, sons

A dor está tão longe desse hotel

Tanta gente na rua

Eu lembro de outros tempos,
outras mãos

Me puxam pela rua a me levar

As tuas me traziam pra esse hotel

Sem testemunhas

Alegria!


Teu sorriso é o que ilumina

A madrugada fria

Tua mão me levava e me trazia

Trazia

Fazia tanto frio, então nevou

Nas ruas, nas vitrines de natal

A gente quase nem acreditou

A gente olhava e ria

Agora na avenida bate o sol

São outras mãos que estão a me levar

As tuas me traziam pra esse hotel

E a gente ria

Alegria
Herbert Vianna

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa coisa que não quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero ainda tentar definir é uma luz tranqüila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão diurna da dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e mais silencioso de existir. Mas estou também inquieta.

Eu estava organizada para me consolar da angústia e da dor. Mas como é que me consolo dessa simples e tranqüila alegria? É que não estou habituada a não precisar de consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ela já se havia transformado em carne e espírito, já não existia mais como pensamento. Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não tenho dor a consolar. Ah, eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça com a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebo que, com essa pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes. E vejo que não há o latejar da dor.

Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e forçadamente o caminho que tomei - e teria sido sempre o que realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo a Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter se transformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um corpo olhando pela janela. Ela é uma chuva. Talvez seja isso que se poderia chamar de estar vivo. E apenas vivo é uma alegria mansa.

(Clarice Lispector)