segunda-feira, 23 de março de 2009

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FALA COMIGO COMO A CHUVA, UMA PÉROLA - POR VALMIR SANTOS

Na obra de Tennessee Williams (1911-83), as mulheres são retratadas com muita veemência. Em Um Bonde Chamado Desejo, por exemplo, Blanche de Dubois e sua irmã Stella surgem emocionalmente desestabilizadas pelos percalços da vida e do homem com quem dividem a mesma casa numa curta temporada explosiva. Em Fala Comigo Como a Chuva (Talk to me Like the Rain and Let me Listen, texto de 1950), o autor americano versa sobre o inominável nos desejos e sentimentos de um casal, ou, para ser mais franco, de uma Mulher.
fotos: João Marcos RosaEssa alma é desnudada com rara integridade e beleza na montagem mineira de Fala Comigo Como a Chuva, da Companhia Teatro Adulto. Samira Ávila desempenha uma atuação tocante da Mulher, simplesmente assim, presa entre as paredes do ser, pelejando em deixar o Homem (por Luiz Arthur), companheiro que lhe é distante e
tão perto do coração selvagem.
A peça toda é quase um solilóquio dessa triste figura em chafurdar na angústia amorosa que lhe paralisa a existência ao mesmo tempo em que a faz prospectar um futuro como lugar e tempo ideais para escapar a tanto descontrole, para plantar raízes.
Mas estamos num quarto alugado, lugar de passagem. Todos os resquícios realistas são implodidos por linhas abstratas, em tons verde, branco e marrom presentes no painel de fundo por onde escorre água/lágrimas; e pelas duas camas de solteiro em estrutura fria de alumínio - a liberdade é cinza. O desenho de luz de Telma Fernandes ajuda a temperar o ambiente etéreo, de plasticidade cinematográfica em ângulos abertos e fechados à visão do espectador conforme a movimentação do Homem e da Mulher.
A diretora Cynthia Paulino apropria-se do projeto de maneira tão coesa que co-assina ainda a direção de arte com Paolo Mandatti. É de Paulino também - cujo trabalho conhecemos assistindo a essa montagem - a seleção musical que remonta ao cancioneiro francês e ao imaginário universal dos amantes. É preciosa a valorização do texto não verbal como ponte orgânica com os diálogos da peça curta. Vide os primeiros oito, dez minutos em que a “escuta” do espectador passa pela música, pelos suspiros, pelo que é mínima grandeza.
Isso proporciona uma presença meticulosa dos atores no espaço cênico, tudo e todos envolvidos pela arquibancada em “U”. O público, no entanto, encontra ainda um recuo, um vão que o distancia alguns centímetros daquela ilha de afeições e amizades líquidas, para citar a percepção do pensador polonês Zygmunt Bauman de que tudo se liquefaz com
muita facilidade na vida contemporânea.
Na concepção do espetáculo, essa água não é mera diluidora de estados conscientes e afins. Presa entre garrafas de vidro transparentes, escorrida do rosto de Ávila ou derramada em filete que aos poucos se avoluma no tablado, a água é o que dá liga a essa Mulher, a força motriz com a qual a encenação ancora sua hesitação, sua ansiedade entre voltar para a cama ou ir embora de uma vez só, súbito, dividida entre o amor e o mar.
Samira Ávila esculpe impulsões físicas que mostram tanto o vigor como a fragilidade da Mulher. Em cena, ela como que não anda, desliza. Sua fala transcorre com docilidade, é suave mesmo nos instantes de tensão (não quer dizer monocórdica). Entre esmaecido e lancinante, seu olhar é a tradução mais perfeita do desalento e do espanto com que enfrenta as circunstâncias para as quais tenta dar um rumo.Luiz Arthur faz um contraponto em que o ímpeto masculino é espelhado na ação física, como no viés de luta marcial, ou na própria insolência do homem adulto que se põe confuso feito menino de colo. Um sujeito que não irrompe com violência, como o Kowalski de Um Bonde Chamado Desejo. Antes, remói silêncios e olhares de peixe morto. Parece ser mais um na platéia a contemplar as dores e sussurros de uma mulher que possivelmente ama mais ao outro do que a si, a cumprir um círculo de eterno retorno.O espetáculo é uma das gratas surpresas desta edição do Fringe, uma pérola daquelas que já valem a edição – e estamos no sexto dia. Faz jus às produções consistentes vindas de Belo Horizonte nos últimos anos. Faz jus à coerência do discurso do artista com a sua prática, sua estética. Sua ética para com a arte e a vida, quem sabe.
Espetáculo: Fala Comigo Como a Chuva
Data: hoje, dia 23, às 12h, e amanhã, dia 24, às 13h
Local: Teatro Cleon Jacques.
Postado por Valmir Santos às 10:44

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